Real e ideal
Um breve momento se passara em sua mente varias vezes durante horas, tudo havia desaparecido em um lampejo de fogo passando por seus olhos e a ultima coisa de que se lembrava era de ver seu próprio rosto em meio aos escombros.
Ao despertar se encontrava em uma sala totalmente sem luz onde se via coberto pela mortífera sensação de não saber onde estava nem mesmo como havia chegado ali. O garoto, embora custasse a acreditar que aquilo acontecia, abria os olhos lentamente tateando algo as suas costas que lembrava uma parede de tijolos que acabara de tomar uma leve chuva de verão e ainda se mantinha quente e úmida.
- Ora, o que temos aqui! – soou uma voz grave, rouca e bem humorada – vejo que ainda existem alguns que podem percorrer longos anos sem encontrar o caminho!
O ambiente se tornou levemente iluminado por uma luz branda e suave que vinha do chão, fora uma grande surpresa quando se viu de pé em meio a enormes olhos e sorrisos afetados que formavam o piso.
- Desculpe, meu jovem, – exclamou o rosto central e de grande porte que parecia se erguer para enxergar o garoto – os meus conterrâneos não têm visto muitos de sua idade passarem por aqui! Desculpe-nos o mau jeito.
Embora aterrorizado, se mantinha em pé, imóvel. Perante aquela situação inusitada e terrivelmente perturbadora, fez força para que sua voz percorresse toda a sala, mas seus esforços em ser ouvido eram abafados por milhares de cochichos que vinham das bocas menores em formas de sorrisos abertos e olhos esbugalhados cujas pupilas tinham formas espirais.
- Calem-se! – esbravejou a cabeça central – não conseguem perceber que o garoto está assustado? Aproxime-se, meu jovem. – O garoto se sentiu enjoado e se controlou para não vomitar enquanto caminhava por cima de olhos e bocas sorridentes que saiam do chão e exclamavam murmúrios ao serem pisoteados.
- Você deve ter ficado anos esperando por esse momento, certo?
O garoto permaneceu calado com uma expressão de não entendimento
-Mas o que é isso? – começou um dos rostos com um grande sorriso – ele não sabe nem falar, deve ser mudo!- Ouviu-se um grande murmúrio de risadas vindas das paredes e do teto, e quando seus olhos já estavam acostumados com a escuridão podia enxergar que, não só o chão, mas tudo a sua volta era coberto por massas de carne com longos sorrisos amedrontadores em forma de lua minguante.
As risadas cessaram quando o garoto pareceu tombar para o lado com um bloco de madeira sem vida, rapidamente, via-se uma enorme massa de carne envolvendo-o, Ao despertar teve a sensação de estar passando por um longo tubo úmido e macio e se sentiu desesperado quando se viu chegando ao fim do túnel e despencando em um enorme espaço vazio que lembrara muito um hospício.
Para sua surpresa pouco antes de chegar ao solo ele viu sua velocidade diminuir e flutuando levemente buscou tocar o solo, mas antes que o pudesse fazê-lo, foi surpreendido por uma firme voz grave que lhe passara autoridade:
- Eu sou aquele que traz respostas a quaisquer questões que tiver, pois eu sou aquele que guarda o segredo da definição do real, ideal e forjado! Estarei aqui até o breve momento de sua partida para esclarecer qualquer duvida que deva ser esclarecida.
Ao olhar mais atento se deparou com uma alta estrutura de formas rudimentares parecida com uma porta de madeira avermelhada levemente envernizada da qual não era possível enxergar o topo.
- e então, nenhum pergunta? – exclamou uma voz que parecia vir diretamente dela, mas o garoto ainda tentava entender por qual motivo estaria fixada ao chão uma porta ali parada em meio à imensa sala branca, sendo que era possível chegar ao outro lado dela sem sequer abri-la, curvando-se para tentar ver o que havia do outro lado ele foi surpreendido novamente com a mesma voz grave vinda diretamente da porta, agora tinha certeza de que não havia ninguém do outro lado – qual o seu nome? – soou a voz como um trovão. O garoto permaneceu calado com uma expressão de desconfiança enquanto entrelaçava os dedos em frente ao peito, como se quisesse se proteger – ora deve ser outro mudo... – disse a voz que agora tinha um aspecto calmo e paciente – espere um instante garoto, vou verificar suas informações – no curto tempo em que permaneceu silencio pode-se ouvir um leve cantarolar que vinha de traz da porta mas logo foi interrompido por um grito alarmante:
- o que? Isso não pode estar certo! – e um enorme olho se abriu poucos milímetros à frente da porta, o mesmo olho com as pupilas em forma de espiral como havia visto na outra sala, então, o olho o fitou por alguns instantes tão esbugalhado quanto poderia estar enquanto uma voz murmurava aterrorizada algo inteligível.
Naquele momento o olho que o encarava se fechou e deu espaço a uma grande fumaça de cor violeta escuro que, como uma explosão, era expelida pela porta com toda a força que fez o garoto curvar bruscamente os joelhos a ponto de quase cair.
- ACHA QUE PODE ME ENGANAR? MALDITO! – foram essas as ultimas palavras que ouvira antes que a porta se abrisse e revelasse um enorme buraco em forma de espiral com dentes pontiagudos que tragava violentamente toda a fumaça para dentro, levando conseqüentemente o garoto que se viu imerso a uma pasta escura e densa que o levava como uma correnteza com tamanha violência que o garoto se viu entre a vida e a morte varias vezes a ponto de fazê-lo desmaiar displicentemente.
Quando recuperou sua consciência, ele se via em um enorme deserto escaldante e sem sinal de vida, mais uma vez tinha mudado de cenário e nem ao menos sabia como tinha acontecido, decidiu andar um pouco para saber onde estava mas depois de varias horas andando o garoto se viu exausto e se deixou cair em meio as areias escaldantes do deserto, mas nem ao menos ligava para o calor que sentia, a essa altura, estava preocupado em continuar respirando. Deitado na areia olhando para cima ele viu uma figura de tamanho mediano que lembrava um ser humano voando por ali, como se aquilo fosse comum ele nem ao menos se perguntava por que diabos alguém estaria voando no meio do deserto e nem se preocupava se aquilo era mesmo um ser humano, ele se levantou depressa e começou a gritar:
-AQUI! HEI! – droga, não deve estar conseguindo me enxergar, imaginou o garoto que agora conseguia falar sem problemas. O vulto que pairava sobre ele mudou a direção e desceu em queda livre como se fosse atacá-lo, mas o garoto displicente só estava preocupado em sobreviver e nem ao menos notou que, um segundo depois, estava jogado a muitos metros de distancia de onde estava inicialmente.
- HAAAAA! – ouviu-se em meio a poeira que se deslocava com muita velocidade em razão da queda – o que você estava pensando ficando debaixo de mim desse jeito?- continuava ainda como uma incógnita entre a poeira.
Com a poeira baixando uma figura se revelava lentamente. Tinha lisos cabelos negros e uma boina vermelha que fazia combinação com um macacão por cima de uma camiseta branca, pouco suja devido à poeira momentânea, batia as mãos contra a camiseta com luvas mais sujas do que as próprias roupas, parecendo não notar que o gesto a sujaria mais, então, lançou um severo olhar por traz dos óculos de armação vermelha escuro e deu passos suaves até o garoto.
-Qual o seu nome? – perguntou ela com aspereza
- meu nome?
E o silencio tomou conta enquanto os dois se olhavam, um, analisando a situação e tentando entender o que o outro fazia no meio do deserto e o outro sem saber quem era.
Depois de uma longa olhada dos pés a cabeça, a garotinha, com um sorriso no rosto, disse:
- você parece ter cara de Clovis!
-Clovis? – perguntou ele perplexo
-sim, e sabe do que mais? Você parece ter acabado de chegar. Eu nunca imaginaria que alguém já dessa idade nunca tenha tido um sonho na vida, é de se espantar!-
Ajeitando os óculos e dando mais alguns passos em direção a ele, ela continuou – bom, essa capa é nova e eu ainda não sei como voar direito com ela. É complicado!
O garoto ainda confuso e com uma expressão de dor só afirmava com a cabeça tudo que ela dizia, então, quando o assunto já havia terminado ele perguntou:
-bom, e qual é o seu nome?
-Monique! – respondeu de imediato – mas pode me chamar de mô. Bom chega de papo furado, logo vai anoitecer e eu tenho trabalho a fazer! Quer vir comigo?
Não dando tempo dele sequer pensar em uma resposta ela já havia agarrado o seu braço e estavam se distanciando do chão a uma velocidade cada vez maior.
Ao longo da viagem ouviam-se gritos e risadas muito nítidas até que, em um piscar de olhos, eles sobrevoavam algo que lembrava uma cidade antiga de casinhas de madeira e palha e bem longe se avistava um grande castelo cor violeta que entrava em contraste com a floresta em tom de cinza que o cercava.
Ao descerem na cidade o garoto finalmente recuperou a voz.
-mas quem diabos é você? – gritou ele
- não acha que quem deveria estar fazendo essa pergunta, é quem agora vos fala? – sorriu a garota com um tom orgulhoso provavelmente por usar palavras difíceis enquanto se aproximava dos portões da cidade que se abriram automaticamente.
- Pronto! – disse ela animada enquanto adentrava os portões da cidade – finalmente em casa! E você, garoto-que-não-sei-o-nome, trate de não se perder aqui, pois essas ruas são tão confusas quanto a cabeça do Chris.
- Chris?...- e a garota se perdeu em meio às esquinas tortas e mal planejadas sem ao menos dar a devida importância ao garoto que se encolhia cada vez mais entre os ombros. Então, aquela mesma garota, reapareceu de repente agora atrás do que se encolhia.
-hei você! Disse para tomar cuidado! Como pode se perder sem menos dar um passo?
- A, eu...
- Ta, agora chega! – disse ela enquanto pegava a mão do garoto – você é mais burro do que aparenta sabia?
Então as duas figuras estranhas subiram a rua e viraram a direita dando de cara a um pequeno Pub com o nome mais confuso que a conversa tinha sido até aquele momento.
- que tipo de lugar se chama “Andando”?
- então decidiu falar alguma coisa? Ótimo, pois aqui é nosso quartel general! Espero que se de bem com o pessoal, não quero ter que ficar separando brigas lá dentro outra vez – disse Monique encontrando a chave e destrancando a porta dos fundos que haviam alcançado sem que o garoto percebesse.
A porta se abriu em um rangido ensurdecedor e em meio às sombras ouviu-se um murmúrio muito grande e estrondos que lembravam pesadas barras de chumbo batendo
- virem essas coisas pra lá – disse uma das figuras que agora caminhava até a luz – é apenas a mô!
Os outros vultos pareciam respeitar o rapaz alto e magricela com ar astuto e grandes cicatrizes em seus braços que agora se encontravam cruzados e ressaltavam ainda mais seu olhar de censura.
- E quem é esse moleque? Agora traz qualquer um para cá sem ao menos pedir permissão?
- Esse é... Um novato, eu o encontrei andando no deserto – disse ela sem jeito.
- E esse novato não tem nome? – perguntou o magricela astutamente ao perceber que a garota dera uma pausa ao apresentá-lo – Ora vamos, quer que acredite que alguém com dezesseis... Dezessete anos, é um novato?
- Deixe o garoto em paz! Talvez ele só queira banana – ouviu-se uma voz suave ao fundo.
Vários dos que estavam escondidos nas sombras deram gargalhadas caçoadas da frase, que não parecia fazer sentido algum para eles – se é banana que ele quer, que dêem bananas a ele!
Então, um tremendo alvoroço deu lugar as risadas na sala, pois agora, o que havia sugerido bananas ao convidado, de fato, segurava quatro bananas de dinamite acesas e parecia tentar fazer malabarismo com duas delas. Então se perdeu nas sombras, provavelmente agarrado pelos colegas e tendo suas bananas de dinamite apagadas.
- Perdoe o Chris, ele não bate bem da cabeça – disse o magricela sentando a uma cadeira próxima e fazendo sinal para o garoto se sentar – meu nome é Sandro e eu sou um velho soldado do Clan, provavelmente um dos mais velhos daqui, Pois minha memória está presa, mas ninguém sabe quantos anos o Chris vive, então não posso afirmar com certeza de que sou o mais velho.
- A, sim... – disse o garoto respondendo o sorriso de Sandro.
- bom, se você realmente é um novato como diz ser – continuou Sandro, colocando os pés sobre a mesa – então deve ter acabado de passar por aquela porta maldita e tem muitas perguntas entaladas na garganta, não é mesmo? Bom – continuou rapidamente sem dar espaço para uma resposta – vou te explicar tudo. Mas primeiro como é seu nome?
O garoto sentiu sua língua dobrar por um instante. Até o momento não tinha parado para pensar naquele detalhe importante e não conseguiu formular uma reposta antes que
Sandro com um olhar de entendimento se Levantasse e andasse até o fundo daquele salão escuro que, até o momento, estava totalmente quieto e com um ar gélido ao olhar de todas as silhuetas fitando o garoto sem nome, quando das sombras ressurge Sandro empunhando um grande espelho emoldurado e o apoiando à parede.“Olhe” disse Sandro ao apontar para o espelho e indo buscar o garoto na cadeira.
Ao se levantar ele sentiu os joelhos tremerem, pois se deu conta de que não se lembrava ao menos de como era sua aparência.
Um olhar e tudo parecia estar afundando, o chão e as paredes estavam se desintegrando e se transformando em escombros em chamas, então ele se viu. Ali, andando em meio ao caos estava sua própria imagem, um garoto de porte médio com cabelos castanho claro e olhos verde mel. Seu rosto levemente arredondado parecia manchado de fuligem e sua boca levemente aberta com um olhar de tristeza. Uma lagrima rolou e ele se viu no bar novamente, mas agora o mesmo garoto o fitava no espelho com uma lagrima caída.Com o rosto limpo, mas com a mesma expressão de tristeza ele sentiu dois braços o apararem quando se desequilibrou sob os próprios joelhos e tombou de costas.
Acordou debruçado suavemente no chão sem temperatura aparente e tão sujo quanto as solas dos sapatos que ele agora observava enquanto tentava se levantar. Ouvia-se murmúrios baixinhos de alguns por ali então um rápido pensamento veio a sua cabeça:
- Fausto! – gritou o garoto se levantando em um salto – meu nome é Fausto!
Todos olharam para ele assustados com o som grave e confiante que sua voz havia tomado forma.
- bom acho que surtiu efeito – disse Sandro com um longo sorriso no rosto.
